sábado, 23 de outubro de 2010

Irrevogabilidade temporal

A claridade lá fora fugira. A figura esguia e em tudo de gestos infantis espreita pela fresta da porta da sala. É Sara, a minha filha, tão parecida com a minha irmã, só que a Lisa era mais morena, mais eu.
A Sara esconde mal o receio que guarda no olhar e a Lisa não tinha medo de nada e muito menos de mim. Mas a Sara tem. Espreita pela porta, todas as noites, buscando o olhar da mãe como se só esta a pudesse salvar da pequeníssima travessia que terá que fazer entre a porta de madeira escura e o sofá de veludo. E eu, no meio da sala, calado, finjo que fixo apenas o ecrã da televisão. Finjo que me é indiferente o mutismo, finjo que não receber mais uma vez um beijo de boas noites faz parte da vida de um pai e de uma filha.
Lembro-me de quando íamos ver o mar, os dois. Um dia arrastei-te, quando querias ficar em casa a fazer outra coisa qualquer. Recordo-me do teu ar zangado de criança contrariada. Acreditei que se dissiparia com a pequena mala ráfia que te comprei e o pedaço de silêncio brando no pontão, entrecortado por algumas frases que ia deixando no ar. Deixaste de confiar em mim nesse dia, Sara? Admito que nesse dia a criança parecia eu, mas afinal também era tão jovem...
Sabes Sara, não faço a mínima ideia de quantos anos me restam, ainda que continue a fingir que tenho a vida toda pela frente e que há demasiado ruído na sala enquanto o médico esgota o termo “maligno”, esgotando-me o meu próprio tempo.
Sara, Sara... Quando é que se acabou o teu gostar de mim? Deveria ter parado um dia de fingir e contado que ainda sou o mesmo que te levou ao hospital quando partiste a cabeça e te provei que tudo na tua vida ficaria sempre bem ao pé de mim?


Sempre fui cobarde, pai. E tinha demasiado medo da reacção dela se dissesse a verdade. “Sara, gostas mais de mim ou do pai?”. Não era uma pergunta de faz-de-conta e nessa noite quebrou-se algo dentro de mim, por o saber a ouvir-me a resposta que eu teria que dar. Dividi a família em bons e maus porque tinha que ser. Se não o fizesse não conseguiria passar por si sem lhe dizer boa noite, naquela amaldiçoada encenação quotidiana. E o pai calado, em jeito de não faz mal, como fazia em tudo nesta casa. Porque foi que desistiu de mim?
Ainda tenho na memória a sua teimosia em me arrastar para vermos o mar, era eu uma criança. Só porque era o habitual - matutava eu com aquele meu feitiozinho tão meu. Estava tão zangada. Tão zangada que nunca mais me esqueci desse dia. E é graças a essa minha forma de ficar zangada que sei que me levava a ver o mar todos os fins-de-semana, só os dois.
A cobardia, pai, também pode ser como uma doença, a mim envenenou-me. E quando lhe acenei um adeus leve do outro lado da Praça de Alvalade, não sabia que seria pela última vez, porque se soubesse, não o teria deixado ir embora assim, o carro a fazer a curva e o pai a desaparecer lentamente. Tinha ido a tempo de gritar, “Gosto tanto de si, pai!”.


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